ABDICAÇÃO
Toma-me,
ó noite eterna, nos teus braços
E
chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que
voluntariamente abandonei
O meu
trono de sonhos e cansaços.
Minha
espada, pesada a braços lassos,
Em
mãos viris e calmas entreguei;
E meu
ceptro e coroa, — eu os deixei
Na
antecâmara, feitos em pedaços.
Minha
cota de malha, tão inútil
Minhas
esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as
pela fria escadaria.
Despi
a realeza, corpo e alma,
E
regressei à noite antiga e calma
Como a
paisagem ao morrer do dia.
ANÁLISE AO POEMA "ABDICAÇÃO"
O soneto abdicação é um soneto
particular na obra de Pessoa, pois temos um relato exato de como foi escrito e
em que estado de espírito Pessoa se encontrava quando o escreveu.
Numa carta escrita a Mário
Beirão, em fevereiro de 1913, Pessoa descreve como, chegando a casa sentiu a
proximidade de uma tempestade - ele tinha um medo pavoroso dos relâmpagos, não
tanto dos trovões - e isso colocou-o num estranho estado de ansiedade, em que,
paradoxalmente lhe deu para criar um soneto de calma inusitada.
Veja-se desde já como é
curioso o que Pessoa diz, sem se aperceber. Embora ele na mesma carta fale de
como o " fenómeno curioso do desdobramento é a coisa que habitualmente
tenho", mas lhe escapa que esse desdobramento lhe permitia fugir ao seu
medo - neste caso um medo concreto e mundano, o medo das trovoadas.
Não chegava ao génio que era
Pessoa a reza simples a Santa Bárbara. Teve neste caso de se refugiar na musa
poética. Calíope substitui-se, pagã, ao símbolo religioso e assim se criou mais
um momento de solene beleza na língua portuguesa.
"Abdicação" é também
um poema que aborda um tema querido a Pessoa - a noite e a solidão. Neste caso
a noite é simbólica de um estado de solidão que Pessoa bem conhecia - era a sua
realidade quotidiana. Tão triste e simultaneamente calmo é o poema... isto
porque a tristeza que Pessoa sente, é uma tristeza de abandono, de quem deixa
de resistir: eis o porquê do título do poema, abdicação. Quem abdica, é por
desistir voluntariamente, não por ser forçado. Pessoa abdica da vida para que a
noite o aceite - para ser plenamente nada na noite, já que foi nada em vida.
Pelo menos que seja plenamente nada - e o que há mais pleno de nada do que a
noite?
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