segunda-feira, 12 de novembro de 2018

O Poeta é um Fingidor...




ABDICAÇÃO

 
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
        Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa, — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

Minha cota de malha, tão inútil
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

ANÁLISE AO POEMA "ABDICAÇÃO"

O soneto abdicação é um soneto particular na obra de Pessoa, pois temos um relato exato de como foi escrito e em que estado de espírito Pessoa se encontrava quando o escreveu.

Numa carta escrita a Mário Beirão, em fevereiro de 1913, Pessoa descreve como, chegando a casa sentiu a proximidade de uma tempestade - ele tinha um medo pavoroso dos relâmpagos, não tanto dos trovões - e isso colocou-o num estranho estado de ansiedade, em que, paradoxalmente lhe deu para criar um soneto de calma inusitada.

Veja-se desde já como é curioso o que Pessoa diz, sem se aperceber. Embora ele na mesma carta fale de como o " fenómeno curioso do desdobramento é a coisa que habitualmente tenho", mas lhe escapa que esse desdobramento lhe permitia fugir ao seu medo - neste caso um medo concreto e mundano, o medo das trovoadas.

Não chegava ao génio que era Pessoa a reza simples a Santa Bárbara. Teve neste caso de se refugiar na musa poética. Calíope substitui-se, pagã, ao símbolo religioso e assim se criou mais um momento de solene beleza na língua portuguesa.

"Abdicação" é também um poema que aborda um tema querido a Pessoa - a noite e a solidão. Neste caso a noite é simbólica de um estado de solidão que Pessoa bem conhecia - era a sua realidade quotidiana. Tão triste e simultaneamente calmo é o poema... isto porque a tristeza que Pessoa sente, é uma tristeza de abandono, de quem deixa de resistir: eis o porquê do título do poema, abdicação. Quem abdica, é por desistir voluntariamente, não por ser forçado. Pessoa abdica da vida para que a noite o aceite - para ser plenamente nada na noite, já que foi nada em vida. Pelo menos que seja plenamente nada - e o que há mais pleno de nada do que a noite?

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