terça-feira, 3 de abril de 2012

O Poeta é um fingidor




NÃO: NÃO DIGAS NADA


Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

análise do poema "não: não digas nada"


O poema que se inicia com "Não: não digas nada", é um poema ortónimo de Fernando Pessoa, datado de 5 e 6/2/1931. Trata-se, por isso, de um poema tardio do poeta. Muito curto, mas intensamente dramático, como teremos oportunidade de ver, de seguida.

Quanto à temática do poema, eu diria que ele fala sobre o silêncio. Mas é curioso observar que, em Fevereiro de 1931, a relação entre Pessoa e a sua namorada Ophélia Queiroz estava a terminar, para nunca mais ser reatada. A última carta entre os dois data de 21 de Março de 1931, pelo que, datará de alguns meses antes (provavelmente Fevereiro) a efectiva separação.

Julgo que este poema poderá também estar influenciado por este factor. Senão vejamos: Parece-nos que, no poema, a mensagem é dirigida a um interlocutor (ou interlocutora) que não é nomeado. Mas é claramente alguém que não o próprio autor. E ele pede silêncio - aliás, é a abertura do poema:

Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já.

Isto fala um pouco da própria maneira como Pessoa opunha o sonho e a idealização do real face ao próprio real. Ele sempre insistiu numa realidade sonhada que nunca poderia ser alcançada.

Com Ophélia ocorreu um pouco isto. Ele sonhou muito a relação de ambos, e esse sonho nunca se aproximou da realidade. Ele, por exemplo, não conseguia suportar ter de se relacionar com a família dela, de maneira formal, nem sequer oficializar o namoro de ambos. Era avesso a tudo o que saísse da sua idealização do que era a relação entre ambos. Não queria que o mundo se intrometesse na sua ideia do que era Ophélia para ele.

Desta forma podemos compreender este pedido de silêncio à sua "amante ideal". Se nada for ouvido, tudo pode ser verdade. O silêncio é o nada, mas é também - de certa forma - o tudo que não foi ainda dito: é uma forma de realidade perfeita, que permite tudo dentro de si mesma.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

Não ouvir nada (não ligar à realidade concreta) é assim melhor do que qualquer coisa real. A realidade intromete-se na perfeição da ideia que Pessoa faz dela. E nessa realidade estão as suas relações pessoais, os seus amigos, a sua família, e Ophélia.

És melhor do que tu.
Não digas nada; sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

O poema chega ao extremo de considerar que a ideia que Pessoa faz da sua "amante ideal" é melhor do que ela alguma vez poderá ser. Desta forma, Pessoa também consegue anular qualquer hipótese da relação entre ambos resultar, porque nunca se poderá aproximar desta ideia de perfeição. Ao desejar a perfeição de uma ideia subjectiva, Pessoa defende-se de ter de oficializar os seus sentimentos por Ophélia, de se comprometer com ela. O seu sonho dela basta-lhe, ao que parece, e esta é uma ideia triste de felicidade. Uma felicidade contida numa dimensão em que nunca se torna real.

1 comentário:

  1. Obrigado por deixar essa análise sobre esse lindo poema. Um dos mais belos que já li e ouvi.

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