quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Poeta é um fingidor



Sonho. Não Sei quem Sou


Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
             Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
             Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
             Coração de ninguém.


ANÁLISE DO POEMA


O poema "Sonho. Não sei quem sou" de Fernando Pessoa, pertencia ao seu cancioneiro e é um poema ortónimo datado de 6/1/1923.
"Trata-se de um período algo conturbado da vida do poeta, que se vê envolvido com a censura da época, por causa de alguns livros publicados pela editora que fundou – a Olissipo.
No entanto, percorrem o poema temas universais queridos a Fernando Pessoa, nomeadamente o tema do abandono e da solidão, a confusão entre o sonho e a realidade, entre o que sonhado
e o real, entre o agora e o futuro.
"Sonho. Não sei quem sou neste momento. / Durmo sentindo-me. Na hora calma / Meu pensamento esquece o pensamento, / Minha alma não tem alma." - Conseguimos imaginá-lo sentado no seu quarto na Rua Coelho da Rocha (hoje Casa Fernando Pessoa e onde vivia já em 1923), provavelmente à noite pois é quando mais escrevia, a olhar silencioso para o infinito do papel, talvez de pé.
Tentando sair da sua condição diz que sonha. Assim se perde da sua identidade redutora. A sua sonolência em relação à sua identidade – tema marcante da sua poesia - traz-lhe um "pensamento que esquece o pensamento". Quer dizer que sonhando-se deixa de pensar - quer ser todo ele sonho e dormência. Nem alma deseja ter.
"Se existo é um erro eu o saber. Se acordo / Parece que erro. Sinto que não sei. / Nada quero nem tenho nem recordo. / Não tenho ser nem lei." - Tão profundo se deixa cair no esquecimento que a vida mesma lhe parece um erro, um erro pelo menos ele saber dela. Todo ele é um nada, que assume que não tem desejos (nada quer), nem recordações, nem sequer destino (nem ser, nem lei).
"Lapso da consciência entre ilusões, / Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações, / Coração de ninguém." - O seu pensamento é-lhe como uma falha do coração, um interstício sem sentido. E o seu lamento em direcção a si próprio serve de conclusão ao seu dramático e elaborado pensamento nocturno – por muito dormente também claro e branco - dizendo que vive dentro de si um coração abandonado por todos, alheio a todos os outros corações, “corações de ninguém”.
Verdadeira canção de abandonado, sem no entanto nunca ser completamente triste e angustiada, os versos deste poema-canção revelam bem do que ia por dentro da alma de Fernando Pessoa adulto, já consciente da sua vida, já deixado apenas aos projectos pessoais, à sua obra. Tinha quebrado a sua relação com Ophélia Queiroz em 1920 e desde então tornara-se, mesmo segundo as palavras da sua namorada, mais frio e fechado, mais abandonado em si mesmo.
Eis afinal como as palavras se revelam como um espelho para a alma deste homem complexo, mas poucas vezes realmente complicado de ler. Era afinal humano e as suas frases, mesmo que difíceis de interpretar, vertem apenas a emoção de um homem triste, deixado sozinho, metade por opção sua, metade por opção do destino que assim tinha desenhado a sua vida.

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