quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O Poeta é um fingidor



Arre, que tanto é muito pouco!

Arre, que tanto é muito pouco!
Arre, que tanta besta é muito pouca gente!
Arre, que o Portugal que se vê é só isto!
Deixem ver o Portugal que não deixam ver!
Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!
Ponto.

Agora começa o Manifesto:
Arre!
Arre!
Oiçam bem:
ARRRRRE!



análise do poema "arre, que tanto é muito pouco"

Onde muitos vêem apenas um Campos existem, na realidade, uma variedade de Campos. Isto porque Álvaro de Campos evolui como poeta, mais ou menos ao lado de Fernando Pessoa-ele mesmo.

Marcam-se três fases distintas na escrita de Campos. Uma que se inicia com o Opiário, outra a das grandes Odes, e finalmente uma fase terminal, pessoal e abúlica. Vê-se então que Campos passa de um sensacionismo fantástico, um modernismo explosivo, de exaltação da indústria e das máquinas, para um Campos vencido na vida, rendido a um tédio imenso que o afoga em mágoa.

Este poema que me refere é curioso porque entremeado nas duas últimas fases. Observamos que Campos, se parece revoltar-se, parece usar o tom heróico de Whitman que usara nas grandes Odes - a Triunfal e a Maritima - aqui decai já ligeiramente para a análise pessoal. Ele fala já de si mesmo e não do mundo exterior e o seu tom, embora exaltado, é de uma grande mágoa pessoa, é um tom de desilusão e ele apenas se serve da voz alta para reforçar a realidade de uma dor interior.

Tocante é a maneira como o poema, que começa por invocar a impessoalidade do Portugal deixado às bestas, se transforma num relato poético do interior daquele que acusa. Se Portugal está mal, pior ainda está o poeta - a sua situação transfigura-se na massa maior do país, mas, na sua pessoalidade, assume um grau horrivelmente mais poderoso.

"Amor, glória, dinheiro são prisões", diz Campos.

Mas esta frase não pode ser de alguém que exalta o poder e a nobreza de se alcançar alguma coisa na vida. Afinal o que é a liberdade que Campos tanto quer?

A sua liberdade é já uma liberdade na loucura, na solidão extrema que partilha com o seu irmão Fernando Pessoa. A realidade é que Campos se deixou das ilusões da juventude modernista - Campos é neste poema Campos desiludido, rendido às evidências de uma vida que o prende e o oprime com as suas regras - o amor, a glória e o dinheiro.

Campos quer antes a loucura, a grande liberdade: "Nada de paredes - ser o grande entendimento - Eu e o universo". Então ser como os gnósticos que procuravam a verdade no contacto directo com Deus, mesmo correndo o risco da loucura imediata. Ao menos é um risco pela liberdade total, pela redenção.

Deixar o espectro do guarda-fato pelo esplendor do infinito - eis o objectivo astral de Campos. Ou seja, deixar a vida pela loucura, o quotidiano sem sabor pelo risco enorme do Universo vazio.

É triste o seu desespero, que nos toca ao coração. É um homem perdido: "Graças a Deus que estou doido! Que tudo quanto dei me voltou em lixo". Mas é um homem perdido que se acha. Porque na loucura, para ele, "como na bebedeira, Isto é uma solução". Uma solução.

Quando ficar louco é ter uma solução para o desespero, nada mais se pode oferecer em comparação. E é uma solução gutural, de intestinos, como ele próprio diz, é uma solução extrema, de instinto, sem regresso possível.

Campos que fizera poesia transcendental e lírica e nada nelas achou de solução parecida a esta. Agora sente que a náusea a tudo é a resposta a tudo. Comer o Universo e vomitá-lo, como quem recusa a própria existência, como quem recusa a própria vida como coisa real. Uma atitude horrivel, mas com um fim, "E assim como sou não tenho nem fim nem vida...".

"Ser indiferente!", "Ser alheio até a si mesmo!", "Ser esquecido de que se existe!".

Numa linha e sem que Campos o ouse pensar: ser imune à dor da vida.

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