sexta-feira, 15 de maio de 2020

O Poeta é um Fingidor...



O MENINO DA SUA MÃE


No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

ANÁLISE DO POEMA:

O poema ― "O menino de sua Mãe", publicado na revista Contemporânea, III Série, n.º 1, em 1926 é porventura um dos mais conhecidos dos poemas ortónimos de Pessoa, ou seja, poemas que ele publicou usando o seu próprio nome e não um nome de um heterónimo. Quando o publica Fernando tem 38 anos e está num período de grande criatividade poética. No entanto este poema, muitas das vezes analisado superficialmente, é capital na análise de um fundo de dor que para sempre assolaram o poeta e pensador até ao fim dos seus dias.

A biografia de Fernando Pessoa feita por um seu contemporâneo chamado João Gaspar Simões, intitulada Vida e Obra de Fernando Pessoa e datada de 1950 inicia-se com o capitulo: ― "Paraíso Perdido". É importante saber que Fernando Pessoa vive os primeiros anos da sua vida num idílio familiar, no seio de pessoas que o amam e que o adoram ainda sem compromissos e sem o fazerem duvidar do amor. É um idílio também espacial, a família vive numa casa espaçosa no Chiado, nas traseiras do Teatro de S. Carlos e na vizinhança da Igreja dos Mártires. Esse ― "sino da minha aldeia" mais tarde ressoa ainda na poesia de Fernando, como um eco de um passado distante de felicidade, que para sempre está umbilicalmente ligado a um período concreto da sua infância. O que lhe inspira esse ambiente aldeão não é propriamente a falta da cidade ali, ou a presença ali da aldeia, mas antes ― "da minha aldeia", a sua aldeia é a sua posse da memória-felicidade, momento no tempo congelado, arquétipo de alegria infantil e pura.
Os primeiros cinco anos da sua vida são passados nesse idílio afastado do mundo, a só com o seu pai ainda vivo, com a inteira atenção da sua mãe, o deambular de duas criadas velhas e da sua avó já demonstrando sintomas de uma senilidade perturbante. 

Mas para compreendemos melhor o poema em questão, devemos analisar a influência dessa figura que ocupa o altar de platina do seu mundo, para sempre, a sua mãe Maria Madalena. Cedo o seu pai se afasta, por virtude da sua saúde frágil, morrendo também jovem. Pessoa não parece guardar dele memória visual, tão essencial ao ser humano, porque ligada à memória sentimental, deixando assim no poeta uma impressão vaga e breve como uma brisa, mesmo assim aparentemente benéfica, de cultura e civilização.
Sua mãe, no entanto, tinha ela mesma uma cultura invulgar para uma mulher da época, sabia inglês e francês e influenciaria o seu filho decisivamente no apreciar das coisas
belas.
Até aos seus cinco anos, o seu paraíso é este: a atenção completa e devotada da sua mãe e a presença de um pai culto e gentil, que perde quase inconscientemente, sem que ele deixe em si a marca forte de uma personalidade masculina. Nunca mais Pessoa se esquece desta vida tranquila e que sempre recordará em pena e sofrimento, por saber perdida para sempre. Em 1893, o pai adoece gravemente e o irmão mais novo de Pessoa também. O seu aniversário não se celebra como até então. Algo muda decisivamente.

Um mês depois do 5.º aniversário de Pessoa, o seu pai morre, a família muda-se para uma casa mais pequena, longe do Tejo, longe do Teatro de S. Carlos e longe da Igreja
dos Mártires.
Fernando Pessoa confiou a um amigo (o poeta Carlos Queiroz, sobrinho da sua namorada Ophélia) que foi inspirado para escrever ― "O menino de sua Mãe" por uma litografia que viu na parede de uma pensão, onde jantou com um camarada. Mas o ― "menino de sua mãe" não é o soldado morto na guerra e representado nessa ilustração anónima, mas antes Fernando Pessoa ele mesmo (cf. João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa, págs. 29 e ss).
 
Com a morte do seu irmão mais novo, a sua mãe inconsolável volta-se novamente para ― o seu menino. Pessoa sente regressar por instantes um idílio possível, de carinho devotado, mas seria uma ilusão breve. Ás vezes tido como o poeta racional, pensador frio da realidade humana, Fernando leva sempre junto de si esse carinho materno que o alimentou nas horas decisivas da formação do seu ser e que até à morte o animavam na ternura de todas as coisas. 

É o dia 13 de Junho de 1894 o último dia de Fernando Pessoa enquanto ― "menino de sua mãe", é o seu último aniversário comemorado na exclusiva atenção da sua progenitora. Sem amigos, preso à sua mãe e ao pequeno mundo, o pequeno homem começa então a imaginar outros mundos e outras realidades. Trata-se de uma reação, talvez inconsciente de fuga, à invasão do seu mundo por quem será brevemente o seu padrasto. A sua mãe iria abandoná-lo, não em presença, mas talvez mais dolorosamente em afastamento e dedicação. Perdida a ternura, perdida a inocência do Éden, o ― "menino de sua mãe" torna-se mais frio, sombrio, dedicado ao palco interior dele mesmo, drama pessoal introspetivo, arco iris para dentro, explosão de sentimentos para sempre contidos que se revela em poesia. Há uma mágoa que o inunda e que nunca o vai deixar: ― "no plano abandonado, que a brisa morna aquece", note-se o ― "abandonado", ele vai sempre sentir o abandono daquela em que sempre confiou o seu intimo e que depois torna difícil acreditar novamente no amor sincero. Em 1896, vai para a África do Sul e consuma-se o abandono, a deslocação terminal da sua identidade de fora (mãe) para dentro (o seu intimo drama pessoal). Talvez seja tão dolorosa a partida, a desilusão, a perda de tudo o que antes era seguro, que Fernando sente a necessidade de deslocar para outras personalidades, que ainda são ele mesmo, essa dor que lhe parece cruel demais para suportar sozinho. Talvez por isso seja depois Álvaro de Campos, na Ode Marítima, a recordar de modo vivido a partida no vapor para longe. A partida, o corte com o passado edílico, o medo da nova vida, tudo isso marca decisivamente um jovem que procura saber quem é.

O homem ― "abstratamente intelectual" em que se torna esconde um ser que nunca recuperou da traição da sua mãe. Cedo tinha-se dado completamente, coração e sensibilidade e tinha sido traído cruelmente por aquela que mais ele amava. Negar a sua condição de vivo segue necessariamente a vida dolorosa de não confrontar essa traição, de não pôr sequer a hipótese de confiar novamente (v. no fórum do Major Reformado os textos sobre o amor em Pessoa).

É emocionante ler uma passagem do poema que diz: ―"Filho único, a mãe lhe dera / Um nome e o mantivera: / «O menino de sua mãe»". Enquanto filho único, Fernando foi
feliz, até aos seus 5 anos, ou mesmo 6. Mas a mãe não lhe manteve o nome, caindo numa vil traição, vil porque nascida da pessoa mais improvável, de quem devia cuidar e não abandonar. Pessoa não mais esquecerá esta dor, que percorre toda a sua vida, como um arrepio horrível de medo na espinha, cada vez que se vê só, sem esperança, perdido e nada pode fazer senão mergulhar mais fundo na sua tragédia, mais alto no seu génio em desespero, até um fim indefinido, até uma morte que no vazio traz a paz que ele próprio foi incapaz de desenhar com as suas mãos de menino tentando alcançar a sombra da sua mãe já partida dali, mera lembrança, fantasma de um paraíso amaldiçoado, sabor antigo de tranquilidade que permanece etéreo mas para sempre inalcançável.

Não nos parece que interfere com esta análise a opinião de Eduardo Freitas da Costa que diz que este poema não tem "sequer a mais ligeira relação com a sua família". No esforço de rebater a biografia de Simões, o grande amigo de Pessoa tenta proteger a memória daquele a todo o custo, incorrendo porventura ele mesmo em excessos, trazidos pela amizade e a saudade. O tal "quadro de guerra" que Gomes invoca foi a visão "objetiva" para este poema, não explicaria minimamente o seu conteúdo e só ignorando a vida do poeta, sobretudo a relação com a sua mãe, se poderia ignorar essa perspetiva.

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