quarta-feira, 6 de maio de 2020

O Poeta é um Fingidor...



Não sei ser triste a valer

Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E a ambos nos vêm calcar.

Está bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.



ANÁLISE DO POEMA:


O poema que se inicia com "Não sei ser triste a valer..." é um poema ortónimo de Fernando Pessoa que toca um tema querido à vertente ortónima da sua poesia - a oposição entre pensar e sentir, ou mais exatamente entre pensar e viver.

A temática é desenvolvida pela análise dialética e comparativa, entre o ato de pensar (humano) e o ato de florir (natural). Pessoa  tenta,  na comparação,  estabelecer   uma  linha condutora entre o absurdo de pensar perante o absurdo de florir - ambas as ações serão afinal naturais e semelhantes? Dizendo isto, Pessoa tira o conteúdo revolucionário do pensar e assemelha-o ao ato simples do florir. Assim pensar, como florir, não tem um significado intrínseco, uma finalidade lógica superior. Pensar é, como florir, uma ação sem significado além do significado que encerra em si mesma - esgota-se portanto no seu próprio ato, não tem um seguimento e uma conclusão e ai resido o seu absurdo.

A mudança entre os tons interrogativo (1ª estrofe) e exclamativo (2ª estrofe), que passa depois para um tom declarativo é de simples análise. É claro que Pessoa tenta nas duas primeiras estrofes estabelecer a sua comparação - a linha condutora, pelas evidências e semelhanças entre pensar e florir. Por isso ele primeiro interroga e depois afirma para si mesmo a realidade. As restantes estrofes são já produto de uma conclusão do poeta - são, à sua maneira, um ato de pensar que também se extingue em si mesmo e em que "se pensa o pensamento". Por isso o tom declarativo, final, de conclusão, que dá lógica e continuação às duas primeiras estrofes.

O significado da quarta estrofe é quanto a nós o seguinte: para reforçar a sua ideia que o pensar, tal como o florir, é um ato absurdo, sem final definitivo, Pessoa recorre a uma imagem forte - o espezinhar da flor pelos pés de alguém é o mesmo que acontece com o pensar. Ou seja, quem pensa (Pessoa ele mesmo) é esmagado pela vida, porque a vida não é para aqueles que pensam, é precisamente para aqueles que ignoram o pensamento e apenas vivem. Pensar é sofrer. Todas as análises e conclusões são infrutíferas, porque no final são espezinhadas pelo destino, pelos deuses.

Auto-análise

São estas as características de Pessoa ortónimo, e, cada uma delas está presente neste poema, se as buscarmos. Basta relê-lo para entender isso mesmo. E é de certo modo
inevitável, por todas elas estarem relacionadas de certa maneira

Algumas figuras de estilo presentes neste poema: 

  • Os primeiros dois versos da primeira estrofe: antítese (entre a tristeza e a alegria). 
  • Últimos dois versos da primeira estrofe: elipse (não é dito o que as almas sinceras possam ser, mas subentende-se). 
  • Terceiro verso da segunda estrofe: inversão (na ordem das palavras). 
  • Últimos dois versos da segunda estrofe: personificação (a flor sem razão e coração) 
  • Verso 2 da terceira estrofe: aliteração (flor flore) 
  • Versos 2 e 3 da terceira estrofe: anadiplose (repetição de "sem querer") 
  • Últimos 2 versos da terceira estrofe: comparação.
  • Últimos 2 versos da quarta estrofe: eufemismo (nos vêm calcar - matar).

Sem comentários:

Enviar um comentário