domingo, 26 de abril de 2020

Às Voltas com a Música...

25 de Abril. “Grândola, Vila Morena”: a história completa de uma canção com várias vidas.

Ao longo de mais de meio século, a emblemática canção de José Afonso conheceu realidades diferentes. Em 2013, recordámos a sua história com a ajuda de Francisco Fanhais, um dos quatro homens que a registou originalmente no mesmo estúdio onde também seriam gravados clássicos de Pink Floyd, Elton John e David Bowie.


Os escritores de canções exercem o seu mister na esperança de que o que escrevem tenha pelo menos uma vida, o que nem sempre se revela fácil. Muitos escrevem canções que nunca chegam a ser gravadas ou cantadas e quando o são poucas conseguem conquistar um espaço na história. Mas mesmo essas, as que sobrevivem e se agarram com unhas e dentes e palavras e melodias a um tempo qualquer, ficam encarceradas no espaço da memória, condenadas a viverem para sempre no passado ou em antologias que recordam uma qualquer era já desaparecida. Nem todas as canções podem, portanto, ser como «Grândola Vila Morena», uma canção quase-felina que conheceu pelo menos seis vidas.


O nascimento, em Grândola


O guitarrista Fernando Alvim recorda, na reedição de Cantigas do Maio, que a canção nasceu a 17 de maio de 1964, na viajem de regresso de Grândola, onde o cantor se tinha apresentado na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, na mesma noite que Carlos Paredes. Ao volante do carro que também transportava Paredes e o seu acompanhante Alvim, inspirado pelo que tinha presenciado nessa noite, o Dr. José Afonso, como tinha sido apresentado na pequena vila alentejana nessa noite, começou a dar corpo à «Grândola Vila Morena»: «Ele ia cantando ao volante até para não adormecer, depois começou a desenvolver a melodia e quando chegou ao fim da viagem a canção estava feita».

«Sabia da existência do poema», conta à BLITZ Francisco Fanhais, um dos nomes que acompanhou Afonso na gravação de Cantigas do Maio, «conhecia as circunstâncias em que o Zeca o escreveu e que o levou a dedica-lo à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, sabia isso tudo, mas a primeira vez que o ouvi foi já em França».

A gravação, em França


Foi em França que José Afonso conheceu José Mário Branco, em 1969, e a cumplicidade foi imediata. Uma das consequências desse primeiro encontro foi o estreitar de uma amizade e respeito mútuos que implicaria o convite dirigido pelo primeiro ao segundo, para que este produzisse Cantigas do Maio. O homem de Mudam-se os Tempos, Mudamse as Vontades já conhecia Gilles Salle e o estúdio de Michel Magne, no Château d'Hérouville, nos arredores de Paris (onde, depois, Elton John, Pink Floyd e David Bowie, entre outros, gravaram discos). Foi lá que se registou, pouco antes, Os Sobreviventes de Sérgio Godinho, no qual José Mário Branco assegurou arranjos e direção musical, e a experiência tinha sido suficientemente positiva para que um regresso tenha sido organizado com o acordo de Arnaldo Trindade, o editor de José Afonso na Orfeu.

Foi aí que, numa madrugada de outubro, se estenderam cabos da régie do estúdio até ao pátio exterior, com chão coberto por gravilha, para que José Mário, o guitarrista Carlos Correia, José Afonso e Francisco Fanhais pudessem gravar os icónicos passos que marcam o arranque de «Grândola Vila Morena»: «aqueles passos que se ouvem no início não são de soldados, foram captados em estúdio numa espécie de encenação do tipo de ambiente criado pelos grupos corais alentejanos», esclarece Francisco Fanhais, cujas memórias da ocasião continuam nítidas. «Foi esse o ambiente que o Zé Mário quis reproduzir.

Em outubro de 1971, numa madrugada, gravámos esses passos numa zona exterior do estúdio. Por uma razão muito simples: havia uma estrada mesmo ao lado que durante o dia tinha algum trânsito, o que iria prejudicar a gravação. Por isso, às três da manhã lá fomos nós, lembro-me que fazia muito frio, a arrastar os passos numa zona onde havia uma gravilha que criou aquele efeito que se ouve na gravação. Nesse mesmo dia, depois de almoço, fomos para o estúdio, o engenheiro de som mandou esse som dos passos para os nossos auscultadores e foi sobre esse som que o Zeca começou a cantar a "Grândola"».


A apresentação, em Espanha


Gravada em 1971, «Grândola Vila Morena» seria apresentada ao vivo pela primeira vez num espetáculo em Santiago de Compostela, na Galiza, a 10 de maio de 1972, num evento organizado por estudantes envolvidos na luta contra o franquismo. Começou aí outra vida da canção, a de hino de resistência. «É uma canção intemporal», defende Francisco Fanhais, não é um panfleto ligado a uma circunstância específica: afinal de contas já existia antes do 25 de Abril; o poema existe desde 1964, e continuou a existir». No Burgo des Nacións aprofundou-se a ligação de José Afonso às gentes da Galiza que dariam o seu nome a um parque, eternizando assim esta história.

Em Portugal, José Afonso viu o regime silenciar as suas canções, mas «Grândola Vila Morena», curiosamente, não era visto como potencial hino subversivo e a 29 de março de 1974, menos de um mês antes da Revolução dos Cravos, o regime censório permitiu que o tema fosse interpretado no Primeiro Encontro da Canção Portuguesa (proibindo Zeca de dar voz a outros temas como «Venham Mais Cinco» ou «A Morte Saiu à Rua»), evento produzido no Coliseu dos Recreios pela Casa da Imprensa e onde participaram nomes como Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino, Carlos Paredes ou Manuel Freire. Perante os milhares que esgotavam o Coliseu tornou-se evidente a força da canção, que encerrou a noite.

A senha da revolução, em 1974


De canção sonhada ao volante a canção fixada em fita em França e daí a hino de resistência estudantil espanhola, primeiro, e portuguesa, depois foi um passo. Mas a vida mais notória de «Grândola Vila Morena» começou na madrugada de 25 de Abril de 1974, quando passavam vinte minutos da meia noite: o Movimento das Forças Armadas escolheu a canção para segunda senha da revolução, transmitindo-a a partir do estúdio da Rádio Renascença para confirmar que as operações estavam em marcha.

«Quando se deu o 25 de Abril, eu estava em França e nessa manhã liguei a um amigo que me disse o que se estava a passar», recorda Francisco Fanhais.

«Fiquei na dúvida, tal como muita gente, se era um golpe da direita ou de democratas que queriam alterar o regime. As dúvidas desfizeram-se quando percebi o papel da "Grândola": nenhum fascista teria escolhido um tema assim para uma revolução. Senti muito orgulho por ter participado na gravação original dessa canção».


O hino do PREC


«A nenhum de nós passou pela cabeça a importância que a canção ganharia mais tarde», assegura Francisco Fanhais. «Sabíamos que tínhamos gravado uma canção que traduzia um sentimento coletivo muito forte, claro, e por isso mesmo pusemos todo o nosso empenho, toda nossa força interior na gravação, mas não podíamos imaginar a vida que a canção haveria de ter depois». Fanhais refere-se ao papel do tema na madrugada de 25 de Abril, mas também mais tarde, durante o Período Revolucionário em Curso, quando «Grândola Vila Morena» assumiu a dimensão de hino. O que antes se sussurrava, agora gritava-se a plenos pulmões.

Em 1980, ao semanário Se7e, José Afonso confirmava isso mesmo, da outra vida que a canção ganhou à medida que a revolução avançava: «estava de tal modo entusiasmado com o fenómeno político que nem me apercebi bem, ou não dei nenhuma importância, a isso da Grândola. Só mais tarde, quando recomeçaram os ataques fascistas e a Grândola era cantada nos momentos de maior perigo ou entusiasmo, me apercebi bem de tudo o que ela significava e, naturalmente, tive uma certa satisfação».


As outras Grândolas


A outra vida de Grândola, a que se estende até ao presente, é a que passa por todas as outras vozes que a cantaram, antes e depois do falecimento de José Afonso em 1987. Umas menos anónimas do que outras, todas perceberam no entanto que «Grândola Vila Morena» é uma canção maior do que as palavras e a melodia que a definem.

Amália deu-lhe voz logo em 1974, mas houve mais quem a cantasse, dando-lhe vestes diversificadas, do rock (UHF, Autoramas), ao jazz (Charlie Haden, Zé Eduardo Unit) passando pelo balanço tropical (Nara Leão) ou pelo sotaque mais europeu (Pascal Comelade). No início deste ano, «Grândola Vila Morena» voltou a fazer-se ouvir, desta vez invertendo a ordem natural das coisas que dita que normalmente o intérprete é conhecido e o ouvinte anónimo: a 15 de fevereiro de 2013, «Grândola» interrompeu um discurso de Pedro Passos Coelho na Assembleia da República e depois disso ganhou eco em vozes anónimas que a usaram para silenciar membros do governo.

Francisco Fanhais encara este «renascer» da canção de forma natural: «cantarem a "Grândola" outra vez, pegarem nas palavras que reclamam "em cada rosto igualdade" equivale a que as pessoas digam que isto não pode continuar assim». Já contamos seis vidas para «Grândola Vila Morena». Quantas mais virão?

Publicado originalmente na revista BLITZ em abril de 2013

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