segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O Poeta é um fingidor



Sabes quem sou? Eu não sei.


Sabes quem sou? Eu não sei.
Outrora, onde o nada foi,
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dor que me dói.
Duas dores eu passei.


Fui tudo que pode haver.
Ninguém me quis esmolar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.



Análise do poema "sabes quem sou? eu não sei"


O poema "Sabes quem sou? Eu não sei" é um poema ortónimo de Fernando Pessoa, datado de 12/4/1934, portanto um poema já tardio, pois o poeta viria a falecer em Novembro de 1935.

Trata-se de um poema que contém muitas das marcas indeléveis da poesia ortónima, nomeadamente: a reflexão profunda sobre o ser, o negativismo, a lamentação sobre o passado, a grande simplicidade formal e estética, uso restrito de figuras de estilo ou linguagem emocional evidente, um esquema rítmico fechado, etc...

Tentemos analisá-lo mais em pormenor, estrofe a estrofe:

Sabes quem sou? Eu não sei.
Outrora, onde o nada foi,
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dor que me dói.
Duas dores eu passei.

A primeira linha é uma afirmação negativa da própria personalidade. O "não saber quem se é", afirma a inconsequência de uma vida sem objectivos reais, que não chegou realmente a lado nenhum. Há uma grande insatisfação presente nestas poucas palavras iniciais, mas servem desde logo para nos comunicar o objecto do poema, o tema que será abordado.

Pessoa não sabe quem é. Diz de seguida que "outrora, onde o nada foi, / Fui o vassalo e o rei". Ser "o vassalo e o rei" é ser tudo, é ser o menos e o mais. Pode parecer paradoxal que ele nos diga que não sabe quem é, que pareça infeliz com a sua vida, quando de seguida nos diz que já foi tudo. Mas há que notar que ele foi tudo "onde o nada foi", ou seja, apenas na sua imaginação. Foi dentro da sua própria imaginação, no seu mundo ideal, interior, que ele foi tudo, vassalo e rei, pobre e rico, menor e maior, resto e consequência.

A sua dupla dor pode ser explicada pelo facto de ele ter sido tudo em imaginação (primeira dor) e nada na vida real (segunda dor).

Fui tudo que pode haver.
Ninguém me quis esmolar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.

Na segunda estrofe ele reafirma que foi "tudo o que pode haver". Isto confirma o que dissemos, pois apenas se pode ser tudo em imaginação, num mundo idealizado, que nunca se concretiza. Nesse mundo ele era de uma riqueza imensa (ao ponto de ninguém poder pensar em dar-lhe uma esmola). Mas a realidade é que "entre o pensar e o ser", ou seja, entre a imaginação e a realidade da vida concreta, a vida passou, "como um rio sem correr".
Em resumo podemos ver que o poeta nos diz que tudo imaginou dentro de si. Imaginou grandes sistemas, grandes revoluções, e para si mesmo um papel de imenso destaque, enquanto inovador, escritor, poeta, génio, político. Mas nada disso se tornou real. Todas as suas ideias ficaram apenas como ideias por concretizar. E a sua dor é duplicada por esse mesmo facto - de as saber valiosas e reais em si mesmas e da sua vida não se ter transformado na realidade dessa imaginação. Entretanto, enquanto ele pensava as ideias e esperava que elas se tornassem realidade, a sua vida real foi passando, ele foi envelhecendo e foi crescendo nele o desespero e a consciência de que nada iria realmente acontecer. A vida passou-lhe, como um rio sem água, porque na realidade foi uma vida vazia, uma vida sem significado, porque nenhuma das suas ideias vieram ter com ele ao mundo exterior.

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