Se Eu Morrer Novo
Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.
Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.
Análise do poema "se eu morrer novo"
O poema "Se eu morrer novo" é um poema de Alberto Caeiro, incluído nos "Poemas Inconjuntos” do poeta.
Os poemas inconjuntos são aqueles poemas que, não cabendo quer no "Guardador de Rebanhos" ou no "Pastor Amoroso" acabaram por ficar dispersos e reunidos num terceiro conjunto - por exclusão de partes - denominado precisamente poemas inconjuntos (ou seja, poemas não organizados). Estes poemas caracterizam-se por serem ligeiramente diferentes, quer em temática quer em forma, dos poemas "clássicos" de Alberto Caeiro, sobretudo quando comparados com o conjunto principal do “Guardador de Rebanhos”.
Alberto Caeiro foi construído – enquanto personagem heteronímica - como alguém com fraca saúde. Ele viverá pouco tempo e morrerá doente, com a mesma doença que afligiu o pai de Pessoa. Neste poema Caeiro fala-nos da possibilidade de morrer sem publicar os seus versos e não podemos deixar de fazer um paralelo com o próprio Fernando Pessoa, no que toca a esta preocupação. Seria bem possível que Pessoa falasse dele próprio ao escrever estes versos sob o nome de Caeiro. É pois ele que se preocupa em morrer sem publicar.
Caeiro é caracterizado como sendo o heterónimo "natural", que aceita as coisas como elas são, sem as querer compreender.
A sua atitude neste poema é particularmente estóica - e nisso aproxima-se de Ricardo Reis - pois ele parece dar a entender que, se não for publicado, é porque o destino assim o entendeu e nada haverá a lamentar. O que há aqui verdadeiramente de Caeiro é precisamente a referência ao "pensar": "não se ralem", ou seja, não pensem nisso. É a mesma mensagem que por exemplo achamos no "Guardador", quando ele recusa o pensamento das coisas face à aceitação pura delas, assim como elas são. Ele aqui também se refere a uma "coisa", embora seja algo menos concreto, menos natural.
Mesmo sem serem impressos os versos continuarão a ser também eles "naturais", embora seja também natural que eles sejam impressos - a sua natureza, a própria natureza da poesia, é ser lida por outros, como as flores nascem para florescer de cima da terra. Há nesta expressão um claro desvio ao pensamento natural de Caeiro - e nisso os "Poemas inconjuntos" podem ser vistos enquanto uma deturpação desse pensamento original. O Caeiro "original" não se deixaria enredar por este tipo de pensamento – diria apenas que os poemas seriam belos mesmo sem serem publicados, mas Caeiro, neste poema inconjunto não se fica por aí, vai mais longe. Descrevendo quem era a quem o pudesse não conhecer, ele chega mesmo a dizer que "uma vez amei". O Caeiro do "Guardador" nunca diria esta frase, pois para ele o amor era um intruso à visão natural e simples do mundo, que se contempla de longe mas do qual se participa de perto, sem pensar em nada. Amar é pensar e por isso, em lógica, o amor seria recusado enquanto pensamento do outro.
É possível - e muito interessante - contrapor então este poema inconjunto aos poemas do "Guardador" e ver em que medida o "Guardador" é o repositório da heterodoxia de Caeiro, do seu pensamento mais restrito e original, enquanto que os outros poemas denotam já uma certa degenerescência do seu pensamento, uma quebra de convicção, sobretudo por influência de um caso amoroso (cuja influência é por demais evidente no conjunto "Pastor Amoroso").
"o "Guardador" é o repositório da heterodoxia de Caeiro, do seu pensamento mais restrito e original, enquanto que os outros poemas denotam já uma certa degenerescência do seu pensamento", confunde heterodoxia com ortodoxia?
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