Falando de Conceitos
Revisitando o “velho” conceito de Alcoolismo
A noção de alcoolismo como doença, e não apenas como vício, desenvolve-se na segunda metade do século XIX em França. A França foi um dos primeiros países em que mais cedo se começou a valorizar o crescente consumo médio de álcool, havendo uma certa preocupação com os consumos anuais por pessoa e a elevada proporção do número de tabernas por habitante.
A consciencialização do perigo que tais factos representavam para a saúde pública e para a própria sociedade, bem como os progressos no conhecimento dos seus efeitos sobre o sistema nervoso estiveram certamente na base de uma abordagem científica dos problemas ligados ao consumo de álcool.
A partir de então, várias definições de alcoolismo têm surgido, sem que nenhuma satisfaça plenamente.
Já em1940, a escola americana de Jellinek, atenta à extensão dos problemas relacionados com o consumo de álcool, à sua complexidade, e à multiplicidade de interacções de forças e vectores na sua origem, deu passos nesse sentido, fazendo colaborar pela primeira vez, em estudos sobre Alcoolismo, médicos, sociólogos, psicólogos, juristas e economistas. Nas primeiras comunicações internacionais surgiu um novo conceito, alargado, de alcoolismo e apontam-se as vantagens da colaboração interdisciplinar.
Em 1945, este movimento, científico sobre o alcoolismo estende-se a toda a Europa, surgindo em França o CNDCA – Comité National de Defense Contre l’Alcoolisme, e na Suiça o ICCA – International Council on Alcohol and Addictions, mas é à OMS – Organização Mundial de Saúde que se deve o grande empenhamento na definição da problemática ligada ao álcool.
Em 1955, Pierre Fouquet, ao fazer uma revisão de trabalho sobre o assunto, concluía que o conceito de alcoolismo, seus fundamentos e sua realidade, tinham noções muito pouco claras.
Em muitos casos o conceito de alcoolismo seguiu caminhos mais propriamente de classificações do que uma definição concreta.
Quase meio século volvido, as mesmas dificuldades persistem, embora nos últimos anos de investigação, se tenha vindo a propiciar uma renovada compreensão do fenómeno de alcoolização e do consumidor excessivo de álcool.
O “novo” conceito de Alcoolismo
Na realidade, definir o conceito que vulgarmente é designado por Alcoolismo, limitando-se aos efeitos do consumo excessivo e prolongado de bebidas alcoólicas, que acaba por determinar um estado de “dependência” do álcool, responsável por doença física, e psíquica do indivíduo, não tem satisfeito aqueles que encaram o álcool como causa, associada ou não, a outro tipo de patologia, não só individual mas também colectiva, e respeitante à saúde pública.
É o caso, por exemplo, dos efeitos do álcool sobre a condução rodoviária, a criminalidade, as perturbações familiares e os seus efeitos sobre as crianças – concepção, gestação, aleitamento, desenvolvimento e rendimento escolar.
Entre as numerosas definições que se ficaram a dever à OMS, destaca-se a que considera o alcoolismo como doença e o alcoólico como doente, fazendo referência a extensas repercussões do mal, para além das respeitantes directamente ao indivíduo e à possibilidade de tratamento.
Eis a definição de alcoolismo da OMS:
“Alcoolismo não constitui uma entidade nosológica definida,
mas a totalidade dos problemas motivados pelo álcool, no
indivíduo, estendendo-se em vários planos e causando
perturbações orgânicas e psíquicas, perturbações da vida
familiar, profissional e social, com as suas repercussões
económicas, legais e morais”.
Por outro lado, a OMS, definiu os Alcoólicos, como:
“Bebedouros excessivos, cuja dependência em relação ao
álcool se acompanha de perturbações mentais, da saúde
física, da relação com os outros e do seu comportamento
social e económico. Devem submeter-se a tratamento”.
Em 1982, a OMS num documento de trabalho preparado para a “Discussão de Técnicas sobre Alcoolismo”, que teve lugar no âmbito da 35ª Assembleia Mundial de Saúde, refere uma outra definição, de alcoolismo, como sendo:
“Problemas ligados ao álcool, ou simplesmente problemas de
álcool, é uma expressão imprecisa mas cada vez mais usada
para designar as consequências nocivas do consumo de
álcool. Estas consequências atingem não só o bebedor, mas
também a família e a colectividade em geral. As perturbações
causadas podem ser físicas, mentais ou sociais e resultam de
episódios agudos, de um consumo excessivo ou inoportuno,
ou de um consumo prolongado”.
Esta perspectiva mais alargada ultrapassa o simples conceito de alcoolismo como doença, ou seja, os problemas ligados à dependência alcoólica, se bem que extensos e graves, não representam senão uma pequena parte de todos os problemas ligados ao álcool.
Mais do que uma ciência nova, a Alcoologia, tal como foi apontada por Fouquet[1], é uma nova forma de perspectivar um problema complexo e vasto, sob uma forma de abordagem diferente, mais actual e mais adequada, podendo ser definida como:
“Disciplina consagrada a tudo aquilo que diz respeito ao álcool
etílico, quanto a: produção, distribuição, consumo normal e
patológico e implicações deste, suas causas e consequências,
quer a nível individual (orgânico, psicológico e espiritual), quer
a nível colectivo (nacional e internacional, social, económico
e jurídico)”.
Mais acrescenta Fouquet:
“Esta disciplina, autónoma, serve-se, para instrumento de
conhecimento, das principais ciências humanas, económicas,
jurídicas e médicas, encontrando na sua evolução dinâmica
as suas próprias leis”.
[1] FOUQUET, Pierre, BORDE, Martine de, (1985), Le Roman de l’álcool, Paris, Seghers.
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