1.1 Repercussões Sociais do Consumo Excessivo de Álcool
Na Família
As consequências para a família do indivíduo alcoolizado podem ser encaradas sob dois ângulos: de acordo com a natureza tóxica do agente e com a forma do indivíduo se tornar dependente, (normalmente de forma gradual, perturbando a dinâmica relacional, própria de um grupo primário, como é a família).
O lar fica “doente”, com inevitáveis repercussões sobre os restantes elementos, nomeadamente sobre os filhos.
A acção do álcool e do alcoolismo sobre a família faz-se sentir a dois níveis:
· Vida família
o Dificuldades e carências materiais
o Perturbações relacionais
o Deterioração progressiva do lar
o Desagregação familiar
· Descendência
o Efeito indirecto > acção psicológica
o Efeito directo > acção tóxica
Para além das imensas dificuldades materiais próprias destes lares, situações de despromoção profissional e financeira, de desemprego, têm graves repercussões na vida do lar e podem também ser observadas perturbações de ordem relacional e dinâmica.
J. K. Jackson, sociólogo americano que estudou a evolução da perturbação na dinâmica familiar do alcoólico, distinguiu diferentes estádios nessa perturbação, uma primeira fase de minimização do problema, até à desorganização total da família e sua reorganização, “de recurso”, à margem do elemento doente, que segrega mais ou menos completamente. A família passa por estádios intermédios, carregados de conflito, agressividade e dramatização.
As relações conjugais podem ir desde a dependência, à agressividade, rivalidade e ambivalência, sendo muitas vezes uma relação sadomasoquista posta em relevo por vários autores.
A desintegração deste grupo primário, é muitas vezes acompanhada de transformação e troca de papeis o que, em certos aspectos, pode levar a um reequilíbrio na sua dinâmica, sendo que a maior percentagem de separações e divórcios recaía, precisamente, em lares de alcoólicos.
O lar destes alcoólicos tem características muito próprias, como, a instabilidade, insegurança, ambiente tenso e conflituoso, que prejudica gravemente o desenvolvimento das crianças que nele habitam.
Quando o alcoólico é o pai, está em jogo dificuldades de identificação, ausência de imagem paternal e de autoridade, quando é a mãe, são frequentes as situações de carência de afecto e de cuidados, maus tratos físicos e finalmente abandono. Estes são alguns exemplos que estão na base de graves perturbações infantis, que apresentam muito maior incidência na descendência de alcoólicos do que na de outros lares[1].
Estas crianças sofrem com muito maior frequência do que as outras, de atrasos no desenvolvimento, dificuldades e insucesso escolar.
Outro aspecto a salientar, é o facto do contacto com o álcool ser muito mais frequente e precoce para estas crianças, pela maior liberdade de consumo e maior oferta, não sendo raro observar-se a existência de alcoolismo infantil.
Finalmente, a resistência destas famílias a uma “mudança” de costumes e transmissão de falsos conceitos e modelos culturais de utilização do álcool, pode constituir um alvo fundamental e prioritário na acção de promoção e educação para a saúde.
No trabalho
Se o indivíduo adulto passa cerca de um terço das horas do seu dia no trabalho, não é de surpreender que seja também no meio laboral que se façam sentir os efeitos dos seus hábitos alcoólicos, quer excessivos, quer ocasionais.
As consequências resultantes do consumo excessivo de bebidas alcoólicas constituem um dos principais problemas médico-sociais nas sociedades industriais, traduzindo-se de diferentes formas na empresa, no local de trabalho, na estrada, onde quer que o consumo indevido de álcool, ocasional ou excessivo, vá tendo cada vez mais graves repercussões, em face das exigências impostas ao indivíduo, pelas modernas técnicas e novos processos e instrumentos de trabalho.
Perante as modernas características laborais, a não integridade das funções intelectuais e neuro-motoras constitui um dos factores responsáveis pelo crescimento dos acidentes de trabalho, baixas de “performance” e rendimento profissional, como também o crescente e compreensível interesse pelo conhecimento da natureza e amplitude dos problemas ligados ao consumo de álcool e dos meios de intervenção, prevenção e finalmente, tratamento do trabalhador alcoolizado.
A necessidade de conservar o trabalhador no seu posto de trabalho, os elevados investimentos financeiros gastos na sua formação e qualificação, são para a empresa e entidade patronal, uma motivação importante para a organização de programas de prevenção do consumo excessivo de álcool e de apoio aos trabalhadores candidatos habituais às reformas antecipadas, por invalidez precoce, que levam muitas vezes à própria exclusão social do indivíduo.
Os factores materiais têm, sem dúvida, a sua importância (o estado da máquina, as circunstâncias ambientais de calor, frio, poeira, chuva…), mas é incontestavelmente o factor humano que constitui o elemento dominante nesse equilíbrio, que exige uma integridade de funcionamento físico e psíquico, de modo algum compatível com a ingestão excessiva de álcool.
É muito evidente o papel do álcool como causa de perda de aptidão do trabalhador, por intervenção directa nas áreas que têm a ver com a performance do indivíduo, isto é:
Ü Na área das atitudes,
Ü Na área da percepção,
Ü Na área da motricidade,
Ü Na área do raciocínio,
Ü Na área da imaginação,
Ü Na área de criatividade.
Aliás, exames psicotécnicos e laboratoriais põem em evidência o efeito do consumo excessivo de álcool, sobre:
Ü Atraso no tempo de reacção a estímulos visuais e sonoros
Ü Atraso na velocidade de percepção
Ü Perturbações na acuidade visual
Ü Perturbações do limiar de fusão de imagens intermitentes
Ü Perturbações da acomodação
Ü Perturbações no campo visual (ângulo de visão alterado)
Ü Perturbações da visão estereoscópica (a partir de 0,3 g/l)
Ü Perturbações do equilíbrio óculo-motor
Quanto às funções psíquicas, estas também sofrem alterações, como:
Ü Atenção
Ü Capacidade de recolha das informações
Ü Velocidade de tratamento das mesmas
Ü Capacidade de raciocínio
Ü Capacidade de fixação
Ü Falta de capacidade crítica
Ü Gosto de correr riscos
Quando analisamos as causas, que estão na base dos acidentes de trabalho ou de viação, ligados ao consumo excessivo de álcool, as percentagens mais elevadas neste tipo de acidentes são motivadas por:
Ü Erros de percepção
Ü Erros de decisão (por mau tratamento da informação)
Ü Perturbações do controlo motor
Na Condução
Ao consumo excessivo de álcool é atribuído o papel de causa directa de uma elevada percentagem de mortes por acidente de viação e feridos graves e incapacitados.
A análise destas situações veio reforçar a relação existente entre os níveis de álcool no sangue do indivíduo condutor e a frequência de acidentes, a sua maior incidência em determinados dias (fins de semana, festas e feriados) e até em determinadas horas do dia. O álcool desempenha um papel não só como factor de risco de acidente, mas também como factor da gravidade do mesmo.
O álcool é assim, um dos factores que põem em risco a aptidão do condutor, através das perturbações que causa ao nível das três áreas intervenientes na aptidão para conduzir (atitudes, percepção e motricidade). Na prática corrente da condução, estes efeitos traduzem-se em atitudes erradas e perigosas, na euforia da velocidade, da ultrapassagem, de sobrestima da máquina e das capacidades do “eu”, por interpretações erradas de uma informação sensorial alterada (diminuição do campo visual, da visão estereoscópica e da cor), por deficiente coordenação de movimentos, atraso dos tempo de reflexos, etc., etc..
O quadro seguinte dá-nos uma panorâmica geral dos efeitos do álcool e dos riscos associados à condução do veículo durante esse período:
Isto quer dizer, que a legislação relativa à condução sob influência de álcool, que teve a sua primeira formulação em 1982, fixando em 0,5 gramas/litro o valor limite da taxa de alcoolémia na condução automóvel, tem de ser encarada nos seus aspectos positivos como prevenção do acidente e não apenas como um instrumento de controlo de infracção e aplicação de penas e multas.
Na Sociedade em Geral
A maioria dos comportamentos que infringem a ordem pública, a segurança e a lei diz respeito a indivíduos em estado de embriaguez, sendo os delitos praticados com maior violência. É o caso dos delitos e crimes sexuais, de homicídios cometidos por alcoólicos com delírio de ciúme ou com um núcleo paranóide. A ingestão imoderada pode alterar o comportamento humano e transformar o homem num potencial agressor, para si, para a família e para a sociedade.
Pierre Fouquet[1], refere que em França, a percentagem da influência alcoólica nas infracções em geral, é de 19%, com valores máximos nos homicídios voluntários (69%) e incendiários (53%) e com valores mínimos nos homicídios e ferimentos involuntários e roubos (14%).
Em Portugal, num estudo realizado em estabelecimentos prisionais, Odília Castelão e Carminda Canha[2], mostram que cerca de 40% da população reclusa estava ligada directa ou indirectamente ao consumo de álcool (homicídio, em 44%; furto, em 27%; fogo posto, em 5% e violação, em 1,5%).
Mais recentemente, Henriqueta Frazão, João Breda e Augusto Pinto[3], referem que 16,5% da população alcoólica, inscrita no Centro Regional de Alcoologia de Coimbra, tinha problemas com a justiça, sendo a sua idade média de 35 anos, com hábitos muito precoces de ingestão de bebidas alcoólicas (na infância em 66%) e com incidência de bebidas destiladas, em 80% dos casos.
No respeitante à relação entre abuso de álcool e crime de incesto, um estudo efectuado em 1990 por Mercês de Mello, mostra que o acto incestuoso ocorre muitas vezes sob a influência do álcool.
A “fronteira invisível” entre o consumidor normal e consumidor excessivo não se encontra completamente esclarecida, justifica a noção de nocividade potencial do álcool que, assim, constitui um risco para a saúde pública e a sociedade em geral. É preciso pois, conhecer esse risco para ser evitado, prevenido. E prevenir é, como se sabe, “ver com antecipação”, prever “antes de acontecer”.
[1] FOUQUET, Pierre, BORDE, Martine de, (1985), Le Roman de l’álcool, Paris, Seghers.
[2] CASTELÃO, O.,CANHA, C. (1985), Álcool – Marginalidade, Lisboa, Instituto Damião de Góis
[3] FRAZÃO, H., BREDA, J., PINTO, A. (1997), Álcool e Criminalidade, - “população doente do C.R.A.C.”, Revista da Sociedade Portuguesa de Alcoologia, pp. 3-4
[1] MENDONÇA, M, (1977), Étude pédopsychiatrique sur des enfants de père alcoolique, Rev. Neuropsychiatrique Infants, Nº 25, pp. 411-428.
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