segunda-feira, 7 de março de 2011

O Poeta é um fingidor


Quando era criança

Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.

E hoje que sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto.

Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.

Análise do Poema

O poema "Quando era criança" é um poema ortónimo tardio de Fernando Pessoa, datado de 2 de Outubro de 1933. Sendo um poema tardio e da autoria de Pessoa em seu próprio nome, caracteriza-se por uma das temáticas mais queridas a Pessoa quando escrevia em seu próprio nome: a lembrança da infância, enquanto período dourado da sua vida.
Por isso, este poema fala da própria infância de Pessoa e não só da infância enquanto período de felicidade para todos os homens.
Passemos à análise do poema propriamente dito:

Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.


Aqui Pessoa aborda a temática da infância enquanto período da inconsciência completa: "Vivi, sem saber". As crianças vivem a felicidade, porque em grande medida a desconhecem estar a viver. Esta oposição pensar/viver acompanhará sempre Pessoa nas suas análises. Ele sabe que será impossível regressar àquela condição infantil, porque hoje adulto ele sabe qual é a sua vida e não a pode ignorar: ele agora pensa e não se limita a viver. Por isso ele diz "Só para hoje ter / Aquela lembrança". De facto tudo o que resta é a lembrança, porque essa inconsciência da vida não vai regressar novamente.

É hoje que sinto
Aquilo que fui
Minha vida flui
Feita do que minto.


"Hoje" é que Pessoa sente o que foi. Isto reforça o que já dissemos: hoje a vida de Pessoa é feita daquele "pensar" que não existia quando ele era apenas criança. Hoje ele "sente", quando era criança apenas "vivia". A sua vida actual é uma mentira – pela sua própria avaliação. É uma mentira, provavelmente porque ele sente não conseguir descobrir a verdade do seu destino: é uma mentira existencial, uma vida que Pessoa sente não lhe pertencer por direito.

Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.


Pessoa está preso então nessa vida, nessa mentira que lhe impuseram. O que lhe resta é o "livro" que lê, o livro das memórias de uma infância perdida. E ao ler, vem-lhe um "sorriso alheio", um sorriso do passado, que já não é dela, mas que ele pode continuar a recordar, num apaziguamento frágil, mas que ao menos o poderá consolar na sua existência perdida. A memória da infância perdida conforta-o, mas igualmente o sufoca.

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